Saúde e Educação em Vacaria: Do feijão na sala de aula ao afastamento de um médico da UPA

Um grão de feijão no ouvido de uma criança de cinco anos, uma professora que desconsidera seu relato, um atendimento médico inexplicável com cola de secagem rápida, um pai que sai às pressas para comprar o produto, e uma mãe que, por pouco, não viu o filho sofrer sequelas auditivas graves.
A história de L.F.C*., ocorrida na última semana em Vacaria (RS), é mais do que um caso isolado. É o retrato de uma realidade que, em diferentes pontos, repete falhas e atribui responsabilidades individuais, procurando alvos imediatos — usados geralmente como respostas que servem apenas para quem acredita que o problema foi solucionado, que é assim se resolve e ainda comemora com isso.
A compreensão coletiva de que algo maior deve ser visto diante de uma situação assim historicamente evapora quando um novo evento acontece e os algozes encontram a vítima da vez.
A situação definitivamente não é pontual, tampouco restrita aos últimos cinco meses em Vacaria. É algo repetitivo, histórico, e que, por meio dos números da saúde (principalmente na primeira infância) e da educação, não deixa dúvidas: Vacaria precisa se unir em torno de pautas importantes, ou os avanços tão necessários não acontecerão.
O início de tudo: uma brincadeira inconsequente
Era para ser mais um dia comum na Escola Municipal Ceny Paim Mezari, no bairro Mauá. Em sala de aula, um colega de L.F.C. introduziu um grão de feijão em seu ouvido direito.
A criança sentiu dor e avisou à professora, identificada como F.C., que, segundo boletim de ocorrência registrado pela mãe, fez pouco caso. Conforme apurado pela reportagem junto à mãe de L.F.C., o fato teria ocorrido no início do turno escolar, e durante todo o período a professora não tomou providências em relação ao ocorrido.
No final da tarde, quando a criança encontrou o pai — caminhoneiro que retornava de viagem —, pediu que ele tivesse cuidado ao abraçá-la, pois o ouvido direito estava doendo. Era o sinal de que algo estava errado.
A educação de Vacaria precisa de apoio, não de culpados
A educação infantil deve ser um espaço seguro, onde crianças são ouvidas, acolhidas e protegidas. Mas realidades como esta expõem que o ensino municipal precisa de redes de apoio, protocolos claros, formação permanente, condições de trabalho e remuneração que humanizem a profissão.
Acusar a professora isoladamente é esquecer que ela também faz parte de um sistema e está na linha de frente, responsável por dezenas de crianças. É fácil julgar quando algo dá errado, mas é muito mais difícil — e necessário — construir as condições para que o erro não aconteça.
Será que alguém acredita que um educador, um professor — que é fundamental para a vida de todos nós — levanta de manhã com a intenção de ignorar o sofrimento de um aluno? É preciso transparência e ação nessa importante engrenagem. Uma reflexão precisa ser feita sobre isso.
Um bom atendimento mas uma tentativa ainda sem explicação
Ao procurar a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Vacaria, a família de L.F.C. esperava atendimento especializado. Em vez disso, encontrou uma tentativa arriscada: o médico Y.C.M.S.N. utilizou uma haste com algodão (cotonete, com a ponta recortada) embebida em cola para tentar remover o grão. O procedimento falhou.
Segundo a mãe do menor, a UPA não dispunha da cola utilizada. O médico orientou o pai a buscar o produto para realizar o procedimento. Diante da dor do menino, o pai foi rapidamente até um pequeno mercado localizado nas proximidades e comprou o produto.
Ao perceber que o procedimento estava causando dor ao filho, a mãe pediu que a ação do médico fosse interrompida. A partir desse momento, a situação tomou outro rumo.
Em entrevista ao Diário de Vacaria, a mãe do menor ressaltou que, em nenhum momento, houve desamparo por parte das equipes da UPA. Pelo contrário, durante todo o tempo, as profissionais de saúde presentes fizeram o possível para oferecer o melhor atendimento — inclusive após o ato médico, quando, segundo ela, houve um “desconforto” entre os profissionais que estavam no local.
O menino foi medicado, e os pais foram orientados a retornar para casa e aguardar o contato da equipe de saúde, que passaria a buscar um especialista para o caso.
Secretaria de Saúde entra em ação
Desde o ocorrido na UPA, a situação passou a ser acompanhada diretamente pela Secretaria de Saúde de Vacaria. Os profissionais orientaram a família a procurar atendimento no Hospital Nossa Senhora da Oliveira (HNSO), já que os dois médicos especialistas (otorrinolaringologistas) não estavam na cidade.
O médico do HNSO que atendeu o menor conseguiu, com sucesso, remover grande parte do conteúdo que causava dor e desconforto (foto utilizada nesta matéria). A Secretaria de Saúde agendou, para esta segunda-feira (05), uma consulta com um médico especialista no município de Guaporé.
O médico envolvido no atendimento inicial na UPA, vinculado a uma empresa terceirizada responsável pelos serviços médicos, administrativos, de raio-X, higienização e copa da unidade, foi afastado imediatamente. Embora exista essa terceirização, todas as mudanças, rotinas e protocolos são coordenados pela Secretaria de Saúde do município, que, diante dos fatos, entendeu que o afastamento do profissional era necessário.
Erros médicos e uma introdução sobre a cultura de segurança do paciente
Falar sobre erros médicos exige prudência. De um lado, está a dor de quem sofre as consequências. Do outro, a responsabilidade de quem está na linha de frente do cuidado. Mas entre vítimas e profissionais há um ponto de encontro essencial: a segurança do paciente.
A Organização Mundial da Saúde define segurança do paciente como a prevenção de danos evitáveis durante o atendimento em saúde. Isso envolve protocolos bem definidos, equipe capacitada, comunicação clara e estrutura adequada. Quando qualquer um desses pilares falha, os riscos aumentam — e os erros acontecem.
É importante entender que a maioria dos erros médicos não decorre de negligência, imperícia ou imprudência individual. Eles nascem de um conjunto de fatores: excesso de pacientes, pressão por decisões rápidas, falhas de comunicação, escassez de materiais, jornadas exaustivas e falta de protocolos padronizados. Trata-se, muitas vezes, de falhas sistêmicas — não pessoais.
A cultura punitiva, que busca encontrar e punir culpados, impede que esses erros sejam analisados com profundidade. Quando há medo de punição, profissionais tendem a esconder falhas, o que dificulta o aprendizado institucional. Por isso, a segurança do paciente defende uma cultura justa, que diferencia erros intencionais de falhas humanas e busca prevenir a repetição — não apenas punir.
Promover segurança do paciente não significa negar erros. Significa enfrentá-los com honestidade, empatia e responsabilidade. Afinal, um sistema de saúde seguro protege tanto quem cuida quanto quem é cuidado. E, quando todos compreendem seu papel nesse processo, o erro deixa de ser um tabu — e se transforma em aprendizado.
Um outro caminho
Casos como o de L.F.C. revelam que os problemas de Vacaria não estão apenas nas falhas visíveis, mas em como escolhemos reagir a elas. Quando cada erro vira motivo para disputa ou caça aos culpados, perdemos a chance de amadurecer como sociedade.
O caminho pode ser outro: construir uma cultura de transparência, de escuta, prevenção e responsabilidade compartilhada — na saúde, na educação e também na política, que é essencial para a evolução de Vacaria.
Só assim será possível avançar em direção a uma cidade que protege suas crianças e fortalece suas redes, em vez de apenas expor suas fragilidades.
* Os nomes foram preservados pela reportagem por aspectos legais.